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Medicina e educação: mitos e verdades

O Fabio Adiron me convida para uma fala, aqui neste seminário, para falar da relação entre a medicina e a educação. Sem dúvida, me chamou porque sou médico, porque sou pai da Sofia (sou também pai do Otavio, tão meu filho como ela). O fato de ser pai da Sofia (também do Otavio) nada tem a ver com o fato de ser médico, fora o fato de ambos estados do ser estarem ocorrendo em mim ao mesmo tempo. Quando a Sofia nasceu, foi crescendo, fui conhecendo como se dava seu desenvolvimento (o mesmo ocorreu com o Otávio). Em algum momento, conheci as idéias do prof. Melero, depois conheci o próprio Melero. Achei que eram idéias boas, me iniciei no estudo dessas idéias, e me interei mais profundamento do seu pensamento, sobre o desenvolvimento das pessoas com deficiência, me interei dos pensamentos de outros autores, que influenciaram o seu pensamento, como Vigotski, Luria, Habermas, Maturana, e outros.

Vocês podem imaginar que mudei de paradigma, às vezes cheguei a acreditar mesmo nesse caminho explicativo, o da ruptura, a quebra do paradigma, mas eu continuei pesquisando procurando respostas, e encontrei mais perguntas. Hoje acho que o modelo que pensamos, com quebras de paradigma não é muito adequado. Assim, venho propor quebrar o paradigma do paradigma, desconstruir essa noção, que sempre é uma noção de ruptura, de largar o velho, o inconsistente, na construção do novo, que comporta uma nova maneira de pensar. Sempre numa concepção de progresso, de avanço.

O paradigma do paradigma, foi proposto por Thomas Kuhn, no livro a estrutura das revoluções científicas. No livro, Kuhn cita Ludwik Fleck, um médico e bacteriologista polonês, que escreveu em alemão o livro “Gênese e desenvolvimento de um fato científico”. Em seu livro, Fleck aborda um tema bem médico, a sífilis, e é pelo desenvolvimento da noção ou conceito de sífilis, que Fleck ilustra como o desenvolvimento científico ocorre no interior de comunidades de pensamento, que dão origem e abrigam estilos de pensamento.

Estilo de pensamento, na concepção de Fleck, é uma proposição bem próxima à de paradigma, na concepção de Kuhn. Há contudo nuances interessantes.

Para Fleck, o estilo de pensamento não é estático, mas modifica-se, sujeita-se a pressões, produzidas pelo próprio desenvolver da ciência. Uma comunidade científica, contudo, não abandona o seu estilo de pensamento, pois, perdendo o próprio estilo, corre o risco de deixar de existir como comunidade de pensamento.

Os estilos de pensamento portanto estabelecem-se dentro das comunidades de pensamento, e a transformação destes está relacionada a regras, que a própria comunidade de pensamento estabelece.

A disciplina medicina, os médicos, os cientistas envolvidos na pesquisa médica, formam uma comunidade de pensamento, com seu estilo próprio de pensamento. Os médicos, para adentrar essa comunidade de pensamento, têm de ser iniciados nesse estilo de pensamento. Essa iniciação ocorre durante o curso médico. Além do conteúdo da disciplina, os futuros médicos incorporam gradativamente o estilo de pensamento da sua atividade, formando parte da comunidade de pensamento.

Não é minha idéia aprofundar no estilo de pensamento médico, mas a medicina, como matéria de investigação científica, surge da doença, do estabelecimento de entidades patológicas, a partir de desvios observados da normalidade. Mesmo dentro da medicina, é possível ver estilos diferentes de pensamento, por exemplo, a alopatia, a homeopatia. Há conceitos de um ou outro estilo que simplesmente não são entendidos no outro estilo, por estarem formulados em comunidades de pensamento com estilo de pensamentos distintos.

A Educação, como ciência e ramo da investigação humana, sem dúvida tem as suas comunidades de pensamento, seus estilos de pensamento. Na Educação, provavelmente vamos encontrar estilos de pensamento mais numerosos que na medicina. Se discutimos temas da educação, temos de delimitar o nosso estilo de pensamento, para que possamos encontrar os pontos comuns do nosso próprio estilo e daquele com quem discutimos, de modo que possamos nos compreender e interagir.

Estou aqui então, como um representante do estilo de pensamento médico. De algum modo, sou exotérico, (com “x”) uma pessoa de fora do estilo de pensamento da Educação.

Em que poderia um médico exotérico (com “x”) contribuir em uma reunião sobre educação inclusiva? De que vale dizer a uma pessoa pertencente a uma comunidade de educadores, que determinada pessoa tem um diagnóstico médico, um distúrbio qualquer?

Pertencendo a comunidades de pensamento distintas, o mais provável é que a informação médica fornecida não será bem compreendida. Do mesmo modo, um médico terá dificuldade para compreender uma determinada dificuldade educativa, já que pertence à comunidade médica, não a de educadores.

Porque então o pensamento médico permeia tanto as questões educativas? O estilo de pensamento médico conseguiu, ao longo dos anos, estabelecer-se com força, em muitos campos de pensamento, fornecendo caminhos explicativos para outras ciências, que tendo menor tenacidade, consistência de opinião, acabam incorporando elementos de um estilo de pensamento que lhe é estranho. Sem pertencer à comunidade de pensamento médico, os exotéricos, geralmente valorizam o pensamento ali produzido, como algo mais verdadeiro ou confiável.

A noção de paradigma tem, atualmente, maior tenacidade, mais força, que a de estilo de pensamento. Quebrar um paradigma, na concepção de Kuhn, envolve o surgimento de anomalias no paradigma preexistente, que vão se acumulando, até tornar inviável esse antigo paradigma, produzindo-se então a ruptura.

Na noção de estilo de pensamento, modificações puntuais vão sendo realizadas ao longo do tempo, de modo a acomodar novos fatos e novas interpretações dos fatos. Na medicina, por exemplo, se aparece uma nova técnica, muda o estilo, temos de pensar diferente, pois as doenças vão aparecer de uma maneira diferente, e mesmo doenças diferentes, que não apareciam antes, vão aparecer. A concepção da verdade científica, portanto, modula-se ao longo do tempo, o que se considera verdade hoje, pode ser compreendido como um mito, e mitos podem virar verdade.

A educação inclusiva, nessa linha de raciocínio, não é uma quebra de paradigma, mas uma mudança no estilo de pensamento. Será preciso  inventar uma nova educação, para acomodar a educação inclusiva?

Será que o estilo de pensamento médico tem algo a contribuir nessa construção?

Palavras Bacanas

Tradução e paráfrases de uma seção do artigo “Reassigning Meaning” [cf. LJDavis (org). Disability Studies Reader, 2006] de Simi Linton, da Universidade de Columbia, por Ubiratan Vieira

Termos como “pessoas com necessidades especiais”, “deficiente eficiente”, “excepcionais”, e “pessoas/crianças especiais”, vêm a tona em diferentes momentos e lugares. São raramente usados por deficientes politizados ou acadêmicos (exceto com uma ironia palpável). Entretanto, podem ser considerados tentativas bem-intencionadas de valorizar as pessoas com deficiência. Transmitem a mentalidade da responsabilidade social e da boa vontade de fazer o bem, endêmicos às agências paternalistas que controlam muitas vidas de pessoas com deficiência. “Pessoas com necessidades especiais” é o único termo que parece que pegou. Pessoas não deficientes o usam em conversas sobre pessoas com deficiência sem uma ponta de ansiedade, sugerindo que acreditam que seja um termo positivo. Esta designação não faz muito sentido para mim. Dizer que sou uma “pessoa com necessidades especiais” é afirmar que os obstáculos para minha participação são físicos, não sociais, e que a barreira é minha própria deficiência.

Os termos “deficiente eficiente” e “excepcionais” tiveram uma vida consideravelmente curta nas pratilheiras. O primeiro é usado para refutar estereótipos de incompetência. Entretanto, é um termo defensivo e reativo mais do que um termo que propõe mudanças. O segundo, “excepcionais”, foi usado como justificação psicopedagógica para o “fracasso escolar” e a segregação de crianças em salas e escolas, mas foi logo substituído para esta função pelo termo “especial”.

Uma série de profissões são construídas no entorno da palavra “especial”. Uma grande infra-estrutura resta na ideia de que “crianças especiais” e “educação especial” são ideias estruturantes, validadas e úteis. Entretanto, os dicionários (Aurélio e Michaelis) insistem que “especial” seja reservado para casos fora do comum, excelentes, notáveis, superiores e que se aplique exclusivamente a uma pessoa ou coisa ou uma categoria particular de coisas. A experiência nos ensina que “especial” significa algo diferente quando aplicada à educação ou a crianças. A designação de crianças deficientes e a educação como “especial” pode ser entendida somente como um eufemismo, obscurecendo a realidade de que nem as crianças, nem sua educação são consideradas desejáveis, nem concebidas como “excelentes, notáveis, superiores”.

Rotular a educação e seus destinatários de especiais pode ter sido uma tentativa deliberada para conferir legitimidade a esta prática educacional e para dar suporte a grupos excluídos. Mas também é importante considerar o sentimento inconsciente que tal estratégia pode mascarar. Tenho o sentimento de que a população em geral lida com pessoas com deficiência com grande ambivalência. Sentimentos de antipatia e desdém sempre entram em competição com sentimentos de empatia, culpa e identificação. O termo “especial” pode ser uma evidência não de uma manobra deliberada, mas de uma “formação reativa” coletiva, termo de Freud, para o mecanismo de defesa inconsciente no qual um indivíduo adota atitudes e comportamentos que são o oposto de seus próprios sentimentos verdadeiros, de modo a proteger o ego da ansiedade sentida por experimentar esses sentimentos.